sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Histórias e Estórias que ouvi contar...

O TREM DA FEIRA DO CRATO E O MENINO SINEIRO DA INGAZEIRAS

Todo santo dia com chuva ou com sol, impreterivelmente na hora exata em que o trem passava, ele estava lá incontinenti sobre o morro do grande corte à margem da linha. Batia sua enxada com sofreguidão e alegria. Um som fino, forte e estridente que se ouvia mesmo no interior do vagão. Como um sentinela britânico a bater seu sino, compassadamente, anunciando a passagem do comboio do trem. Ferro no ferro ele batia todos os dias durante as idas e as vindas do chamado trem da feira do Crato.
Um meninote de pequeno porte, tez sertaneja, magro, pretos cabelo sobre a testa. Um ser contente beirando os 12 anos de idade que, por anos a fio cumpria esta missão cotidiana(duas vezes por dia) de, na beira do trilho numa elevação do terreno logo depois da estação de Ingazeiras decerto na localidade do Morro Dourado o garoto anunciava batendo um ferro na enxada; de que o trem estava a passar por ali. 
Tudo aquilo era um acontecimento. Uma novidade que, naquele rincão solitário se renovava duas vezes por dia.
Ficou tão popular a figura daquele pequeno menino que os próprios funcionários da estrada de ferro decidiram presenteá-lo com uma farda, um par de botas, um quepe oficial( tudo confeccionado sob medida igualzinho o da empresa) bem como a instalação de um sino num pequeno poste. O menino, desde então ganhou ares de oficial, tamanha era a forma quase marcial com que ele batia o sino instalado sobre o morro movido pela energia da sua imensa alegria. 
Idas e vindas... Ás vezes com atraso, mas o menino estava lá impávido e decidido a bater seu sino. Nunca falhou um só dia...
Logo ficou conhecido do litoral ao sertão constituído pelo trajeto percorrido pelo trem da feira do Crato. Todos os viajantes queriam vê-lo em suas intermináveis batidas anunciadoras. E não eram poucos os passageiros que durante a passagem jogavam moedas e outros pequenos presentes para aquele garoto dos rincões da Aurora. Enquanto o comboio não desaparecia no horizonte dos seus olhos, ele não cessava de bater o sino. Era, por assim dizer o mais autêntico mito do nosso Prometeu catingueiro. Ao ponto de logo virar uma verdadeira marca. Uma atração entre tantas que havia para ser ver por estas bandas dos sertões caririenses.
Era algo bastante emblemático a figura daquele menino misterioso a bater seu sino em plena caatinga; justamente num lugarejo inóspito, esquisito e improvável para uma cena quase teatral como aquela. Uma cena das mais pitorescas que contribuiu para que aquele acontecimento diário virasse uma verdadeira atração para os que viajavam no trem da Reffesa. 
Todos queria ver o tal menino. O maquinista até diminuía a velocidade da locomotiva para que todos pudessem melhor contemplar a tal visão. Vez por outra, ele fazia até continências para os maquinistas e acenava para os viajantes. Não era um adeus, apenas um até logo posto que havia sempre um sorriso estampado no rosto daquele menino aurorense.
Dizem que o menino do sino nunca mais foi visto em canto algum depois que o trem de passageiro foi desativado. O mundo acabou para ele. A vida perdeu a graça sem a existência do trem que foi durante muito tempo a razão de viver daquele garoto esquecido das bibocas sertanejas de Aurora.
A tristeza de vez banhou seu rosto. Seus olhos encheram-se de saudades e de lembranças antigas. 
Mas que fim levou aquele pequeno e inusitado sineiro? Desapareceu, escafedeu-se o menino do sino do Morro Dourado da Ingazeiras. Quem sabe foi embora do mundo na derradeira viagem do trem. Partira de vez para os céus no mesmo trem que sempre alegrou com suas batidas. Ou talvez apenas se encantou de todos nós, no Sonho Azul ou voou no Asa Branca que tanto admirou, das vezes tantas que anunciou suas passagens em tantas idas e tantas vindas.
Mas, também ainda hoje há quem diga que nas tardes sonolentas e tristonhas, nas ave-marias ou mesmo de sol a pino quando a caatinga do antigo local parece estar consumida em solidão ou em chamas; o menino do sino sempre volta para cima do morro a tocar seu sino. 
Talvez, como alguém que ainda acredita que o trem há de voltar um dia. E que o passado não mais conta quando se espera no trem da feira, apenas um instante de eternidade para a alegria de uma vida inteira.
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José Cícero
Aurora – CE
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sábado, 15 de setembro de 2018

A Natureza no Chão

Agora, invés de caatinga tem-se casas;
urbanização tacanha de tijolos, ferro, cimento e argamassa.
Quando não, pastagens de capim para as muitas vacas,
estradas de pedra,  asfalta e piçarra
para servir aos automóveis e as motocicletas.
E os antigos pés de Juá, Aroeira, Inharé e Jatobá
cederam à força seu lugar, às carvoeiras da terra.
Além do pé de Coité, de Baraúna, Cedro e Trapiá.
Timbaúba, Imburana, Ipê, Pau-ferro e Jacarandá
que perderam a sangrenta batalha pela vida,
sob a violência cavalar da motosserra.
E assim, onde um dia existiam mata e cana
há agora, estrada longa e um imensa capoeira
onde a fera desta destruição tirana
feriu de morte e de vergonha a natureza inteira.
Portanto, invés das antigas moitas de Mororó,
Melão de São Caetano, de Unha de Gato e Imburanas
agora existe plantações inteiras de banana.
- Monocultura contrária
à ordem natural das coisas e da natureza.
E esse tal de IBAMA, que tanto dorme quanto ronca
cedeu à cegueira infame de uma política feia e tonta
que aos ecossistemas e aos biomas
há muito declarou guerra.
Eis que a derrubada de todas as matas
secara os olhos d'água, os riachos, os brejos de frutas e cana.
A cachoeira do rio, além da "levada" das piabas
que descia lá da grande serra,
para alimentar de fertilidade, de fartura e de bonança
os baixios, o coqueiral, os engenhos, os pés de manga
dando de beber às cacimbas, gentes e bichos.
Esfriando os ventos sob as copas dos arvoredos
e limpando os terreiros e as águas das chuvas e do chão
que corriam no riachão
e sob o seio e o útero da mãe Terra.
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José Cícero
Aurora - CE.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A FESTA DE SANTO ANTONIO NO ANTIGO LUGAREJO*

Distrito de Missão Nova no final dos anos 70

Manhã de domingo. O padre subia vagarosamente o alto barranco da estrada de barro em seu jerico. Um pouco à frente seguia sem muita pressa o seu desajeitado sacristão; quase um Sancho Pança de um Quixote surreal e, tipicamente sertanejo. Ia ele montado em seu burrico ‘cardão’ que parecia muito mais cansado do que de fato, se encontrava.
Vinham da cidade pela antiga estrada do Morro e do coqueiro para à tradicional celebração do santo padroeiro que naquele ano coincidiu também com a feira  de domingo. Dois acontecimentos marcantes daquele solitário e bucólico vilarejo esquecido na solidão do mundo.
No burrico em que vinha o sacristão, dois caçuás de couro surrado(que pela cor penso que não era de boi como a maioria, mas de bode curtido)... De cada lado dividido, o peso, entre outras coisas, também além de presentes; cuidadosamente as alfaias, os objetos sacros a serem utilizados no culto divino pelo padre.
Missa de Santo Antonio – o padroeiro. O lugarejo estava em festa. O ar era de puro entusiasmo e alegria o que tornava aquele ambiente ainda mais encantador e aprazível. Tudo pronto e belamente organizado para receber o vigário e convidados. Mais bela e imponente ficava sempre a grande Casa paroquial com a chegada do padre. Gentes do povo e elite lá se misturavam em nome da divindade, como igualmente pelo profano e o sagrado afim de amenizar o azedume da vida uma vez a cada ano. 
Matos cortados nos beirais das cercas, capela pintada, altar enfeitado de flor pelas mãos carinhosas de Dona Zefinha(minha vó), Raimunda Alves, Margarida e minha tia Alaíde, além das fachadas das casas com uma aparência multicor sob o pincel do mestre Pedim. Tudo agora virou saudade e parcas lembranças porque todas estas estão a morar no céu... 
Estavam mais cheirosos e belos os jardins, notadamente o do casarão do Seu Osvaldo e Antonio Argeu. Até mesmo a beirada do ‘rio da rua’ estava roçada, assim como o cemitério, a vereda do canavial que dava para o ‘outro lado’ de Seu Joaca Rolim e dona Toinha - a mais caridosa senhora daqueles rincões. O  chafariz estava também pintado por Zé Maquinista. Apenas as moitas de mufumbo e de aveloz que ficavam pra bandas do brejo não foram decotadas. Lá, era onde se divertiam as ‘mulheres da vida’ que vinham da rua e os muitos homens daquela vila na noite de festa.
Toda a matutada bem vestida. Os coronéis dos engenhos com seus melhores trajes. Donzelas bonitas com laços de fitas coloridas nos cabelos. Batizados marcados e até casamentos eram esperados para a santa missa do domingo na capelinha que ficava à margem da estrada cercada de muitas árvores frondosas onde as pessoas descansavam da longa caminhada e também  amarravam os seus cavalos. No fundo da qual ficava o engenho e bem ao lado após a grande cerca de aveloz o bananal, os coqueirais, o riacho que corria o ano todo e o canavial.  Além da casa grande dos Esmeraldos e a estrada que ia para à serra e o engenho de seu Pedro da Cruz.
Muitos meninos correndo pelos terreiros. Engenhos em silêncio. Pifeiros e cambiteiros bebericando pelas barracas de palha de coco e pelos balcões dos vendeiros Damião Bento, Antonio Siqueira, Antonio Caneco, Ciço do Bar e Seu Otávio ambos situados no quadro do comércio, onde também se instalara o circo de Fuxico, o bozó e o Caipira, além da banca de bugigangas de seu Antonio da feira e o pequeno parque de diversão com suas balançantes canoas, o bingo,  o carrossel rodado à mão e o estúdio de som com suas cornetas tocando os sucessos daqueles anos.
De longe era possível se ouvir o som de sanfonas e zabumbeiro, além da banda cabaçal passeando ao redor da capela o dia inteiro. Era a única vez no ano que o delegado de polícia com três soldados se apresentavam para abrir a delegacia – um pequeno prédio quadrado dividido em dois apertados cubículos. 
Fogos de artifícios explodiam o dia todo no céu daquela vila perdida no oco do mundo até que chegasse a noite festiva iluminada por imensos lampiões de gás e grandes candeeiros. Momentos propícios para as paqueras e os namoricos.
Malgrado o barulho e o reboliço no oitão da delegacia, o doido Bento se mantinha alheio e distraído com seu olhar profundo mirado no firmamento do mundo e, de quando em vez contando as formigas que entravam e saiam o tempo todo do grande formigueiro que ali havia. Quem sabe, como a nos dizer  filosoficamente que, nada daquilo valeria sequer o trabalho reto e empedernido de cada formiga daquele formigueiro.
Foi assim. Mês de julho de um ano ido tão distante que até não mais me lembro dos números. O que sei de fato é que vivi também intensamente tudo aquilo, quando menino. Se não foi eu cegue da gota serena! Juro por Santo Antonio – nosso divino e casamenteiro padroeiro.
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José Cícero
Aurora - CE